26.4.10

Plenitude de vida

Este é um texto todo recortado por mim. Recortei os trechos mais interessantes e marcantes que falam de alcance de objetivos, força, paciência, perseverança e, principalmente, vida.
É a pequena história real de duas garotas que fizeram o caminho de Saint Jacques de Compostella, na França. Isto aconteceu este ano de 2010.

Segue.

dia 07/04 (trecho avignon/lyon/st-étienne/le puy-en-valey)
"Passei a noite em claro. Pegamos um trem avignon/lyon/st-étienne, e de lá tivemos que pegar um ônibus até le puy-en-valey, pois a greve da companhia ferroviária tinha começado (primeiro obstáculo). Por causa dela, perdemos um dia de caminhada. Chegamos em Le Puy umas 19h30 e dormimos no albergue de la jeunesse.

dia 08/04 (trecho le puy-en-valey/st-christophe-sur-dolaison/montbonnet/monistrol d´allier)
Acordamos ainda escuro para ir na missa que abençoava os peregrinos. Minha amiga pediu que o padre abençoasse nossa caminhada até Conques, mesmo acreditando que não íamos conseguir chegar até lá com o tempo que tínhamos. Partimos com uma alegria de viver tremenda. Tava tudo tão feliz que decidimos caminhar o equivalente a 2 etapas da rota num dia só. Foi um erro? Não sei... forçamos demais a musculatura e isso nos prejudicou nos dias seguintes. Mas estávamos cheias de adrenalina. Chegamos em Monistrol d´Allier umas 19h30 e ninguém acreditou que a gente tinha andado tudo isso num só dia. Dividimos quarto com dois velhinhos fofinhos, que nos deram pomada de arnica para destensionar os músculos.

dia 09/04 (trecho monistrol d´allier/saugues/le falzet/chanaleilles/le sauvage)
Essa etapa do caminho é numa altitude tremenda. Nesse dia fez um frio danado e uma neblina tão forte que eu mal conseguia enxergar minha amiga que tava do meu lado. Por isso, perdemos a sinalização do caminho duas vezes e ficamos andando feito baratas tontas no meio do nevoeiro. Para piorar, todo o esforço do dia anterior surtiu efeito e eu não podia suportar sequer o toque da alça da minha mochila nos ombros. Almoçamos numa cidadezinha chamada saugues. Comecei a perceber que eu tava entrando numa região completamente parada no tempo quando vi que ainda era permitido fumar em lugar fechado (vale lembrar que a França foi um dos primeiros países a instaurar a lei anti-fumo em lugares fechados, junto com Portugal). Nesse dia, a gente queria dormir numa cidade chamada le Falzet, mas a dor nos músculos estava tão insuportável que pedimos uma carona quando faltava menos de 2km para chegar lá. Um velhinho parou e nos sugeriu passar a noite numa gîte feudal em Le Sauvage. E para lá fomos. Essa gîte é surreal. Fica no meio do NADA. Lá só existe uma maison gigantesca, toda de pedra, no meio do campo, numa paisagem linda. Comemos pão, queijo e vinho feitos no próprio lugar. Descobrimos que a maior parte dos peregrinos contratam um serviço de "carregamento de mochila" (eles deixam a mochila numa gîte, uma pessoa vai buscar de carro e entrega na gîte da cidade seguinte). Um luxo que a gente não podia se dar...

dia 10/04 (trecho le sauvage/les faux/st-alban-sur-limagnole/les estrets/aumont-aubrac)
Saí de le sauvage com uma sensação diferente acerca do tempo. tudo remetia à Idade Média. O clima, a paisagem, as casas, as pessoas... e pela primeira vez na vida eu senti que não tinha pressa para nada. Nesse dia, eu e jana cogitamos voltar para avignon antes do previsto: a gente mal conseguia pisar de tanta dor nos pés. mesmo assim, não me pergunte como, andamos 22km só pela manhã. Quando chegamos em st-alban para almoçar, ficamos indignadas com a falta de compaixão das pessoas: todos os restaurantes se negaram a nos vender comida porque já eram 14h30, mesmo havendo ainda pessoas comendo nas mesas. Isso só aumentou a nossa vontade de desistir. Mas um não sei quê fez a gente continuar. Mais 15 km à tarde e, um pouco depois de Les Estrets, não agüentamos mais a dor e pegamos uma carona até Aumont-Aubrac. Em Aumont, ficamos numa gîte bem rústica e dividimos quarto com Sophie, uma francesa de uns 45 anos bem animada, que estava fazendo o caminho sozinha.

dia 11/04 (trecho aumont-aubrac/rieutort/montgros/nasbinals/aubrac/st-chély d´aubrac/st-côme-d´olt/combes/espalion)
Nos perdemos logo no meio do trajeto, no começo da tarde, na saída de Rieutort. Ao ponto de sentarmos no chão e não sabermos o que fazer. NO MEIO DO DESERTO. Até bússola a gente consultou. E o que é que as pessoas fazem na hora do desespero? Prendem-se a qualquer fé que apeteça. Minha amiga se levantou sugerindo que a gente fosse para tal lado porque uma aranha caiu no ombro dela e quando ela foi tirar, a medalhinha de Saint Jacques (que o padre da catedral de Le Puy nos deu) tava apontando para esse tal lado. Não nos resta muita opção. Andamos, andamos, andamos e chegamos num bosquezinho. Lá a gente viu um carro e fomos desesperadas em direção a ele para pedir informação. Um casal de uns 65 anos disseram que a gente tinha saído da rota , mas que se seguíssemos naquela direção, íamos chegar numa outra cidade do Caminho de Santiago. Continuamos. Lá pras tantas, já no final da tarde, no meio do deserto, o desespero batendo, a dor , eu estava mor-ren-do de medo de lobo, urso, essas coisas....PASSA UM CARRO! Um carro no meio do nada!! E como se não bastasse, o homem que deu carona estava indo para Espalion! Se conseguíssimos chegar nessa cidade naquele dia, ia ser possível terminar a rota até Conques, como a gente tava querendo!
Chegamos em espalion e foi o mesmo que chegar no Paraíso. A cidade é linda, as pessoas são gentis e o albergue era ótimo! Fim de noite: eu e minha amiga tomamos umas cervejinhas felizes da vida. E sem vontade nenhuma de desistir.

dia 12/04 (trecho espalion/estaing/golinhac)
Acordamos esfareladas de dor, mas numa animação que barra qualquer macaca de auditório. Senti uma pena enorme de sair de espalion. Mas tava tudo ficando cada vez melhor e a vontade era ver o que nos aguardava ao longo do dia. E que dia. Acho que esse foi o trecho mais bonito da viagem inteira.
Estaing é um cartão postal. E lá conhecemos Monsieur Olivier, um garçom velhinho que nos tratou como filhas . Serviu comida (típica!) , me levou de mãos dadas para o banheiro porque eu estava mancando, deu um cajado para minha amiga, pediu que a gente deixasse um recadinho no livro de visitas dele... e ficou todo emocionado com o que eu escrevi. E eu fiquei toda emocionada com o carinho, a atenção e o alto astral dele.
depois, mais estrada, né? Golinhac não chegava nunca. Foi anoitecendo e meu medo de lobo foi crescendo, a dor somatizando....a cada dia aparecia uma dor nova, num lugar diferente. Quando chegamos em golinhac a cidade era fantasma e as mil gîtes que constavam no guia estavam fechadas. Só tinha uma aberta e era muito esquisita. Suja. Escura. Cheia de velhinhos que fazem o caminho de Santiago de carro, comem no restaurante mais caro da cidade e se hospedam na gîte só porque é mais barata, tirando o lugar de quem não tem dinheiro para pagar hotel. As botas limpas deles denunciavam. Bem como secador de cabelo, aquecedor portátil e outros apetrechos impossíveis de carregar nas costas. Ficamos bem desconfortáveis lá. Desanimadas de novo.

dia 13/04 (trecho golinhac/espeyrac/sénergues/conques)
Minha amiga acordou bem amuada por conta da noite mal dormida e das dores, que tinham seu ápice justamente quando a gente acordava e tentava se levantar. As pernas fraquejavam quando a gente tocava os pés no chão pela primeira vez. Toda manhã a gente tinha certeza que não ia conseguir andar por mais que 1 hora. Mas não sei como, a gente andava 10 horas.
Enfim, Ela sugeriu logo de pegarmos uma carona até Conques. E eu disse NÃO! o trecho não era tão longo, não tinha tanta montanha, e a gente devia chegar em Conques AN-DAN-DO. Aí ela se animou.
Esse trecho do caminho também é muito bonito e uma verdadeira recompensa para quem conseguiu chegar até ali: a maior parte é só descida.
Esse dia foi ótimo, porque a gente se superou. Foi ótimo porque a gente percebeu que é mais forte do que pensava. Foi ótimo porque vimos que, em uma semana, a gente viveu intensamente a vida como ela é: cheia de altos e baixos, descobertas, desapegos, provações, medos, simbolismos, dores, encontros, desencontros, frustrações, êxtases, traumas, surpresas, saudade, felicidade, lembranças, solidão... Foi ótimo porque a gente viu que quando uma ajudava a outra, o simples ato de "ajudar a outra" dava força para as duas. E assim devia ser sempre, com todo mundo. Foi ótimo porque a gente viu que as diferenças só agregam e soubemos lidar com isso muito naturalmente. Foi ótimo porque a gente teve alto-controle, vontade e perseverança para alcançar nosso objetivo, mesmo com frio, dor, fome, sede, sono e dúvida. Foi ótimo porque concluímos que não somos mais as mesmas Juliana e Janayna da manhã de 07 de abril. Foi ótimo porque a cidade de Conques, nosso destino, nos acolheu com o carinho que a gente precisava. E a gente saiu de lá com a impressão de que, no final, se mantivermos o foco, tudo acaba dando certo, mesmo se na metade o objetivo pareça impossível.

Nenhum comentário: